Quando a tecnologia ameaça a história

São Paulo, quinta-feira, 05 de maio de 2011

MÁRION STRECKER

Quando a tecnologia ameaça a história

Hoje há tecnologia para armazenar fotografia digital e softwares para melhorar imagens antigas

ENQUANTO NÃO mudo para a Califórnia, resolvi, entre outras coisas, voltar a estudar fotografia. Queria aperfeiçoar meus conhecimentos, bastante amadores, embora fotografe compulsivamente desde os 17 anos, quando ganhei minha primeira câmera reflex.
Escolhi um curso de fotografia digital na Escola São Paulo, concebido pela fotógrafa-artista Claudia Jaguaribe e dado por uma plêiade de nomes conhecidos da fotografia brasileira. Em poucas aulas, o assunto mudou da história da fotografia para o armazenamento da fotografia digital.
Antes, usavam-se filmes e sabíamos perfeitamente como conservá-los em boas condições por longo prazo (cem anos ou mais). Também fazíamos ampliações em papel e entendemos como essas fotos envelheciam, manuseando fotos dos nossos antepassados. Percebemos também como fotos coloridas podiam perder a vivacidade com mais rapidez do que fotos em preto e branco. Então veio a fotografia digital.
Entre os primeiros a adotar câmeras digitais estavam os fotojornalistas, que tinham velocidade a ganhar, e os amadores, que não tinham nada a perder.
A fotografia digital evoluiu e continua a evoluir vertiginosamente, enquanto crescem também os números de pixels (pixel é abreviatura em inglês para “elemento de imagem”, ou seja, é o menor ponto que forma uma imagem digital).
Por isso, caiu no senso comum a interpretação de que quanto mais pixels uma câmera tem, melhores fotos ela será capaz de produzir. A vida real, porém, é bem mais complexa do que isso.
Tomei um susto quando soube que as cores primárias no mundo digital não são as mesmas de antes. No mundo digital, as cores primárias são o que chamam simplesmente de RGB (vermelho, verde e azul). Vale para o televisor, para o vídeo, para as câmeras.
Passamos as primeiras décadas de fotojornalismo digital provavelmente sem saber o que, como e quanto arquivar de todos os registros históricos feitos por nossos melhores repórteres fotográficos.
Em regra, imagino que de cada série realizada por um fotojornalista, apenas as fotos escolhidas por algum editor tenham sido de fato armazenadas, se é que foram. No mundo pré-digital, todos os negativos costumavam ser armazenados, no mínimo para um editor do futuro ter imagens inéditas para publicar.
Outro problema grave é a questão da qualidade das fotos produzidas, publicadas e principalmente armazenadas nessas décadas de transição dos filmes para o mundo digital. A internet costuma se considerar a mãe de todas as mídias, embora esteja mais para casa da mãe joana!
Será que alguém se preocupou em criar e organizar arquivos de fotos de alta qualidade no momento em que eram publicadas fotos em baixíssima resolução, para garantir a visualização rápida em monitores simples com conexões precárias?
Vou dar um exemplo “caseiro”. Se alguém tiver curiosidade de espiar as memórias fotográficas do UOL (http://sobreuol.noticias.uol.com.br/historia/), verá que as fotos antigas são bem pequenas. Isso porque foram publicadas num tempo em que a qualidade dos monitores e das conexões eram bem piores que as de hoje. Se tentamos simplesmente ampliar essas fotos, elas ficam horríveis.
Hoje há tecnologia para fazer e para armazenar fotografia digital em ótima definição, embora nem todos conheçam e apliquem as melhores práticas do ramo. E, claro, há dúzias de softwares para melhorar imagens antigas.
No mundo amador, a graça de fazer 1 milhão de fotos sem gastar 1 milhão em filmes fez com que se fotografasse mais do que nunca. Vivemos a era das câmeras nos dois lados dos equipamentos: uma para eu fotografar/filmar, outra para eu ser fotografado/visto. Tudo ao mesmo tempo, por que não?
Sou entusiasta das novas tecnologias e não tenho a menor intenção de voltar aos filmes. Estou fascinada com o mundo das tags (etiquetas) e estou sendo introduzida agora às maravilhas da revelação digital.
Mas vamos falar sério. Jogo de ganha-ganha? Pra mim, isso é marketing ou técnica de negociação. Na vida real, quando um ganha, outro perde.

MÁRION STRECKER é jornalista e cofundadora do UOL. Escreve às quintas-feiras, a cada quatro semanas, neste espaço.

marionstrecker@me.com – twitter.com/marionstrecker

Publico este texto da Márion, que é, além de minha entusiasmada aluna na Escola São Paulo, alguém que tem grandes preoucopações com memória, tecla que eu não paro de bater! A indústria nos viciou neste docinho digital, todo mundo adora fotografia digital. “Fazer 1 milhão de fotos sem gastar 1 milhão em filmes” seria o melhor dos mundos se o custo de armazenamento disso não destruísse nossos orçamentos – ou nossos acervos! Segundo o estudo “Dilema Digital*”, da “Academy of Motion Picture Arts and Sciences”, de 2007, o custo de armazenagem de uma matriz de cinema em formato digital, é 11 X maior que armazená-la em película.


O vício digital é altamente nocivo à história, quando não é acompanhado de boas prátcias – que envolvam a captura, o armazenamento, a preservação e o acesso digital sistemáticos. A Biblioteca do Congresso Norte Americano publica um guia de “boas práticas” que poderia servir de exemplo para nós ( dpBestflow.org ). Deveríamos ter políticas públicas como estas.
Costumo dizer que acervos fotográficos com 5 anos de vida correm mais riscos que os de 50 anos! Convém dar um passo atrás para reavaliar nossas estratégias de captura e de guarda. Os benfícios de uma tecnologia só são reais quando igualam ou suplantam a tecnologia anterior! Até lá, alguém perde neste jogo.


“The Digital Dillema” é um estudo promovido pelo Conselho de Ciência e Tecnologia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (AMPAS). O DIlema DIgital foi brilhantemente traduzido pela Cinemateca Brasileira e está disponível para download no site da Cinemateca.